Travis Bickle: O Homem do Subsolo
Entre as imagens mais perturbadoras da modernidade, erguem-se aquelas que encarnam, de modo exemplar, a falência do homem como ser de comunhão, e sua reclusão irremediável no claustro inabitável de si mesmo. Tal figura, delineada com rigor e espanto por Fiódor Dostoiévski em seu Homem do Subsolo, reaparece, transfigurada, na personagem de Travis Bickle, protagonista do filme Taxi Driver de Martin Scorsese: um homem que, impelido pelas forças invisíveis de uma sociedade corrompida, desliza paulatinamente da contemplação ressentida à ação violenta, do isolamento à catarse, da amargura silenciosa à explosão sanguinolenta.
Ambos são não apenas vítimas de seu tempo, mas seus produtos mais radicais: expressões vivas da decomposição da possibilidade de uma vida partilhada, de uma linguagem comum, de um horizonte ético em que o homem possa, serenamente, realizar-se segundo sua natureza social e racional.
Travis é, assim como o homem do subsolo de Dostoiévski, uma alma ferida, deformada pela solidão, pela incomunicabilidade e pela exacerbação narcísica da interioridade. São dois espelhos em que a modernidade contempla a figura fragmentada e angustiada de um homem que já não encontra lugar no mundo, nem na comunidade, nem em si mesmo.
1. Na gênese desta figura — tanto no homem do subsolo quanto em Travis — está a experiência radical do exílio, não espacial, mas ontológico: o homem separado, não apenas dos outros, mas de si mesmo, pois desprovido de uma medida objetiva para ordenar sua própria vida.
O subsolo, em Dostoiévski, é antes de tudo a metáfora deste lugar interior onde o homem, repelido ou repelente, se abriga para sobreviver, mas onde, ao mesmo tempo, apodrece espiritualmente pela ausência do outro, pela carência da alteridade que o obriga a confrontar-se apenas com a própria imagem, deformada e amplificada.
Travis Bickle, tal como o homem do subsolo, é a figura do homem que viu demasiadamente a degradação do mundo e, impotente para integrá-la numa síntese superior, optou pela clausura da própria interioridade. A cidade, em ambos os casos, não é mais o espaço da convivência, mas o teatro da degradação: para o homem do subsolo, a São Petersburgo sombria e burocratizada; para Travis, a Nova York infestada de vício, violência e corrupção.
Ambos olham para a cidade não como participantes, mas como observadores ressentidos, afastados, solitários, nutrindo um desprezo amargo que, pouco a pouco, se transmuta em narcisismo: o homem que não encontra beleza no mundo volta-se para si e se contempla, ora com piedade, ora com repulsa, ora com uma vaidade obscura.
2. O isolamento, contudo, não é uma pureza, mas uma deformação. A alma isolada, privada do olhar do outro, que a corrige, e do vínculo comunitário, que a modela, tende a exacerbar-se, como bem diagnosticou Dostoiévski. O homem do subsolo proclama: "Sou um homem doente… sou um homem mau".
Mas esta autoacusação, longe de ser uma confissão humilde, é já o sinal de um narcisismo dissimulado: o deleite na própria miséria, a fruição sórdida da própria incapacidade de integrar-se, transformada em orgulho invertido.
Do mesmo modo, Travis Bickle, ao perambular pelas noites da cidade, não é apenas o vigilante ético que recusa a corrupção: ele é também, e cada vez mais, o homem que se nutre do desprezo que sente, e que, ao cultivar este ressentimento, alimenta sua própria imagem como alguém superior, separado, incorruptível, distinto da multidão ignara e depravada.
Este é o paradoxo terrível do isolamento: ele começa como recusa ética da corrupção, mas degenera, frequentemente, num narcisismo defensivo, onde o homem, para suportar sua solidão, se persuade de que é melhor que os outros, que sua marginalidade não é um fracasso, mas um privilégio, uma marca de superioridade.
Em Travis, este processo está patente: sua linguagem interior está saturada de julgamentos morais sobre os "animais" que povoam a cidade, e sobre sua própria missão de limpá-la. Tal discurso não é apenas ética, mas já narcisismo: ele se contempla como um messias negativo, como o único são numa sociedade enferma.
3. Tanto o homem do subsolo quanto Travis Bickle são figuras que ilustram a impossibilidade moderna de resolver a tensão entre a interioridade exacerbada e a ausência de um mundo comum.
O homem do subsolo permanece na pura ruminação amarga, no discurso infinitamente regressivo e autodestrutivo, incapaz de agir, paralisado pelo excesso de consciência e pela ironia corrosiva que dissolve toda possibilidade de decisão. Sua célebre confissão — "Onde já se viu um homem que tem prazer na própria dor?" — é ao mesmo tempo um diagnóstico e uma ironia: ele sofre, mas se alimenta deste sofrimento, e prefere perpetuá-lo a arriscar-se a uma reconciliação sempre imperfeita.
Travis, ao contrário, radicaliza a situação: ele não permanece na pura ruminação, mas, coagido pela própria exacerbação narcísica e pela violência do mundo que contempla, decide agir. E esta ação, inevitavelmente, assume a forma de uma catarse violenta: purgar a cidade, realizar, através da força, o que a razão e a convivência já não podem mais instaurar.
Sua célebre preparação — o treinamento físico, a compra das armas, o espelho em que ensaia sua figura de justiceiro ("You talkin’ to me?") — não é apenas um rito de passagem, mas um espetáculo narcísico, no qual ele constrói uma imagem de si como vingador, como instrumento de uma justiça transcendental que ele mesmo forjou na solidão.
A violência, neste contexto, não é um meio racional para um fim superior, mas uma descarga afetiva, uma purgação necessária da tensão insuportável entre a pureza que idealiza e a corrupção que constata. Tal gesto é uma catarse no sentido mais clássico: uma purgação do excesso passional acumulado pela ausência de comunhão, de vínculo, de reconhecimento.
4. A figura de Travis Bickle, tal como a do homem do subsolo, é assim o emblema da falência da possibilidade ética na modernidade: ambos expressam a situação de um homem que não podendo viver na cidade, nem podendo fugir dela, se refugia na solidão, mas uma solidão que não eleva, não purifica, não fortalece, mas degrada, deforma, exacerba.
Não é o isolamento do sábio, que se recolhe para contemplar as verdades eternas, mas o isolamento do ressentido, que se refugia para contemplar a própria ferida, para exacerbar sua diferença, e que, por isso, ao invés de se libertar do mundo, acaba por nele se enredar ainda mais, num ciclo vicioso de desprezo, ressentimento e, por fim, violência.
Travis, como o homem do subsolo, é uma figura da modernidade tardia: ambos são, ao mesmo tempo, lúcidos e patológicos; diagnosticam com precisão a decomposição do mundo, mas não conseguem escapar à decomposição de si mesmos. Sua superioridade ética inicial — a recusa da corrupção — degenera em narcisismo; sua solidão voluntária transforma-se em isolamento inabitável; sua ação, quando ocorre, é violenta, até catártica, mas incapaz de instaurar uma verdadeira ordem.
5. Travis Bickle e o homem do subsolo são, pois, figuras trágicas da modernidade: não heróis, nem vilões, mas sintomas — a expressão de um mundo em que a comunidade se dissolve, em que a linguagem se fragmenta, e em que o homem, perdido de suas finalidades superiores, já não consegue senão refugiar-se na interioridade solitária, onde, à falta de um Deus ou de uma polis, só encontra o próprio espelho, e nele, não a redenção, mas a imagem deformada de sua miséria.
Ambos são testemunhos lúcidos da degradação moderna, mas também vítimas dela: a corrupção da cidade os empurrou para a degradação de si mesmos, e sua tentativa de resistir — ora na ruminação amarga, ora na violência catártica — é, no fim, impotente.
Assim se cumpre, silenciosamente, a tragédia do homem moderno: condenado a viver no subsolo de si mesmo, a contemplar incessantemente a própria ferida, incapaz de reencontrar o caminho da vida comum, da linguagem partilhada, e da ação orientada por um bem superior.
— Iohannes Van Hellsing